segunda-feira, 13 de julho de 2015

Nosso Português 1 - A Fala

(Pequeno estudo de linguística para leigos. Conhecimento de nível universitário  baseado na obra abaixo citada.) 

Introdução

A linguística é o estudo cientifico da linguagem. A linguagem existe porque um pensamento se une a uma forma de expressão, seja a fala, a escrita ou a leitura.  Dentro da tradição do trabalho linguístico existem  várias áreas de interesse, dependendo do ponto de vista como é observada a linguagem. Assim, podemos dividir a linguística em fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, análise do discurso, pragmática, sociolínguistica, psicolinguística, etc. 

Em outras palavras, a linguística está voltada para a explicação de como a linguagem humana funciona e de como são as línguas em particular. A linguagem é um fato social que sobrevive graças às convenções sociais que são admitidas para ela. Ler e escrever são atos linguísticos.  

A fala também é um ato linguístico, é ela que mantém uma língua viva. As pessoas falam da maneira como seus semelhantes falam e por isso se entendem. Se cada um falasse como quisesse jamais poderia existir a linguagem numa sociedade, a comunicação oral entre as pessoas. 

Os dialetos 

Pelos usos diferentes no tempo e nos mais diversos agrupamentos sociais, as línguas evoluem e passam a existir como um conjunto de falares diferentes ou conjunto de dialetos, todos muito semelhantes entre si, mas cada qual apresentando suas peculiaridades com relação a alguns aspectos linguísticos. Os dialetos são os modos diferentes de falar uma mesma língua. Não são, portanto, modos errados de falar uma língua. Os dialetos de uma língua são como línguas específicas com sua gramática (exercitada espontaneamente por imitação) e usos próprios, mas muito semelhantes entre si. 

Todo falante nativo usa sua língua conforme as regras próprias do seu dialeto, espelho da comunidade linguística a que está ligado. Há diferenças entre o modo de falar de um dialeto e o de outro, mas isso não significa que um dialeto dispõe de regras e o outro não.

O português, como qualquer língua, não é propriedade de um indivíduo ou de um grupo fechado de pessoas, mas é um fenômeno social,  um bem cultural do nosso povo e se espalha por todos os níveis da estratificação social brasileira. Como qualquer língua, o português é um fenômeno dinâmico, não estático, isto é, evolui com o passar do tempo. 

 No Brasil há muitos dialetos, tanto na mesma região geográfica quanto em regiões geográficas diferentes. Por exemplo, um baiano (na Região Nordeste) tem um dialeto (modo de falar) diferente de um gaúcho (na Região Sul). Uma pessoa do interior de São Paulo (um paulista) fala o dialeto caipira, de menor prestígio: “nóis vai prantá arrois”; enquanto um paulistano (da capital) fala um dialeto de prestígio ou dialeto-padrão: ”nós vamos plantar arroz”; ambos são dialetos da Região Sudeste. 

O uso linguístico dialetal não é por si errado, é apenas diferente do uso de  outro dialeto de uma outra região geográfica ou do dialeto-padrão (ou de prestígio).  O Brasil tem tantos dialetos que o linguista Cagliari (2010) afirma que o português está morrendo. Segundo ele, no momento em que os dialetos do português  se diferenciarem muito uns dos outros acabarão se tornando de fato e reconhecidamente línguas diferentes. Foi o que  aconteceu, na Antiguidade,  com o latim vulgar que através dos seus dialetos gerou as línguas românicas: o português, o francês, o espanhol, o italiano, etc. que passaram a exercer a função de línguas de prestígio na nova sociedade estabelecida, que então deixou de lado o latim clássico, de prestígio, que acabou morrendo.

A escola precisa ensinar ao aluno das comunidades carentes que é preciso aprender  o dialeto-padrão ou dialeto de prestígio, que contém a norma culta da língua, porque ele representa um instrumento de promoção social e intelectual. 

Mas, para estudá-lo não é preciso desprezar nem abandonar o dialeto da sua comunidade. 

Nota de Lucia Rocha: o latim é uma língua morta porque já não é falado sequer por uma pequena comunidade no mundo. Mas, o latim não é uma língua extinta porque dele restaram muitos documentos. O sânscrito arcaico é uma língua extinta porque já não é falado por ninguém no mundo todo e dele não restaram documentos. 

Como é estabelecido o dialeto-padrão

O inglês

No Reino Unido falam-se cinco línguas diferentes: o inglês (English), o gaélico (Gaelic), o galês (Welsh), o córnico (Cornish) e o irlandês (Irish). Além disso,  existe um número surpreendente de diferentes dialetos da língua inglesa, semelhantes entre si em alguns aspectos, por isso são inglês, e diferentes entre si em outros aspectos, por isso são variedades diferentes do inglês. Há porem uma variedade ou dialeto conhecido como o “inglês da rainha” (ou da BBC ou, como chamam os linguistas, RP, isto é, received pronunciation) que é considerado a variedade-padrão, o dialeto-padrão. 

Regionalmente, as pessoas falam com sotaque local, usando a variedade linguística típica da região (Cockney, escocês, irlandês, Yorkshire, etc.), mas quando não querem revelar suas origens passam a usar o sotaque da rainha ou inglês-padrão, sejam elas de que região forem, pertençam a que classe social pertencerem. Falando o inglês-padrão, todos os outros valores de prestigio  e desprestigio revelados pelos modos diferentes de falar a língua, ficam de certo modo “neutralizados”, em favor da forma “neutra” (que na verdade é a de prestígio absoluto). Todas as outras variedades de inglês revelam a origem geográfica do falante. Esse é um exemplo de como uma sociedade estabelece o que é “padrão linguístico” e os demais valores de prestígio e estigma para as variedades linguísticas.

O português

No Brasil, a situação é diferente. Não existe um português da rainha, nem do imperador, do presidente da República ou equivalente.

Observando o comportamento da sociedade, nota-se que em São Paulo, por exemplo, há um modo de falar que goza de grande prestígio e vários outros modos que em graus diferentes são estigmatizados, chegando-se ao dialeto caipira, que o é em maior grau. No Rio de Janeiro há um modo de falar que é considerado de prestígio, mas que é diferente do modo de falar de prestígio de São Paulo. São dialetos diferentes.

Ocorre a mesma coisa desde o Norte até o Sul do país. As linhas divisórias desses dialetos não se confundem com as fronteiras dos estados. 

Com a entrada do rádio e sobretudo da televisão nas casas e na vida das pessoas, criou-se um novo conceito de fala de prestígio: a fala formal da televisão. Como a influência da TV Globo é hoje muito grande, o chamado “padrão global” está penetrando na fala das pessoas e comunidades. As crianças também usam de modo natural a fala da TV. Por exemplo, os locutores das rádios locais de Aracaju, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre têm um mesmo padrão de fala, exceto nos programas regionais. 

A variação linguística

 A sociolinguística mostra os problemas da variação linguística e da norma culta. A variação linguística são os diferentes dialetos. A escola tem por objetivo ensinar como a língua funciona, portanto  deve incentivar a fala e mostrar como ela funciona. A escrita preserva uma língua como um objeto inanimado, fossilizado. A vida de uma língua está na fala.

Muito pouco se conhece da fala portuguesa. A escola gira em torno da escrita e consequentemente a gramática normativa (aquela que todos nós estudamos) está voltada para a escrita. Numa língua existem valores sonoros diferentes para cada símbolo alfabético e a ortografia por si só não nos dá uma orientação clara sobre a pronúncia da língua e seus dialetos.

As línguas evoluem com o tempo, se transformam e vão adquirindo peculiaridades próprias em função do seu uso por comunidades específicas. Todas as variedades do ponto de vista estrutural linguístico são perfeitas e completas em si. O que as diferencia são os valores sociais que seus membros têm na sociedade. Desse modo, um baiano falará como baiano, não como gaúcho, uma pessoa de classe social alta não falará como uma de classe  baixa. 

Ao se transformarem com o passar do tempo, as línguas não se degeneram, não se tornam imperfeitas, estragadas, mas adquirem novos valores sociolinguísticos ligados às novas perspectivas da sociedade que também muda. Nessas transformações não aparece o certo e o errado linguístico, mas o diferente. Certo ou errado são conceitos  pouco honestos que a sociedade usa para marcar os indivíduos e classes sociais pelos modos de falar e para revelar em que consideração os têm, se são pessoas que gozam de influência, se ocupam cargos de prestigio ou não, se exercem o poder instituído  ou não etc. Essa atitude da sociedade revela seus preconceitos, pois marca as diferenças linguísticas com marcas de prestígio ou estigmas.

Incorporando esse comportamento preconceituoso da sociedade, a escola também rotula seus alunos pelos modos diferentes de falar. Assim, um aluno se torna “certinho” porque é falante do dialeto de prestígio e o outro é um aluno carente, “burro”, porque é falante de um dialeto estigmatizado pela sociedade. Como espelho da sociedade, a escola não admite o diferente e prefere adotar as noções de certo e errado numa falsa visão da realidade. A escola só vai aceitar a variação linguística como um fato linguístico quando mudar toda a sua visão de valores educacionais.

A escola deve respeitar os dialetos das diversas comunidades, entendê-los, ensinar como essas variedades da língua funcionam, comparando-as entre si, mas entre eles deve incluir o próprio dialeto de prestígio.

Se linguisticamente não existe o certo e o errado, mas o diferente, socialmente as coisas não caminham desse modo.  Isto porque, na vida prática, um operário que trabalhe diretamente com uma máquina, em silêncio, não precisa falar o dialeto de prestígio. Mas um funcionário que trabalhe diretamente com o público, sobretudo com as classes sociais mais altas, somente se manterá no emprego se  souber falar o dialeto-padrão. Da mesma forma é o que se espera de um dirigente. 

A escola deve ensinar como funcionam a fala, a escrita e a leitura e quais os usos que elas têm. Deve ensinar  o português da norma culta, que é o dialeto-padrão ou de prestígio, desempenhando assim o papel imprescindível de promover socialmente os menos favorecidos. 

(Continua no próximo texto, Nosso português 2: a escrita e a leitura.) 

Nota de Lucia Rocha: O Prof. Dr. Luiz Carlos Cagliari é um professor universitário que atua no campo da linguística com especialidade em fonética. Fez seu doutoramento em Linguística pela Universidade de Edimburgo, Escócia. Fez seu pós-doutoramento em Linguística pela Universidade de Londres e pela Universidade de Oxford, Inglaterra. Tem várias obras publicadas, uma vida dedicada à escola. Foi livre docente e professor titular da Unicamp na graduação e pós-graduação do Instituto de Estudo da Linguagem-IEL da Unicamp. É professor adjunto da UNESP de Araraquara, SP. Em 1994, tive o privilégio de ser sua aluna na graduação do IEL na disciplina Alfabetização e linguística, quando cursava Pedagogia na Faculdade de Educação da Unicamp.

Para saber mais, leia o livro:
 Alfabetização e linguística, Luiz Carlos Cagliari, Scipione, São Paulo, 2010

https://pt.wikipedia.org/wiki/Luiz_Carlos_Cagliari

Imagem: 
https://www.google.com.br/search?q=imagem+para+pessoas+conversando,+falando&espv=2&biw=1680&bih=925&tbm=isch&imgil=cHV09tYzjQFesM%253A%253BrN3PWPAG8QZjhM%253Bhttp%25253A%25252F%25252Fwww.inglesfl

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seus comentários são o combustível de todo estes trabalhos... Obrigada