quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

As Raízes da Nossa Família

Árvore Vermelha - Tapeçaria 

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No Brasil colônia, as meninas e as mocinhas da aristocracia tinham preceptores. Foi o caso da minha avó Ana Luiza d’Oliveira em meados do século XIX. E assim passo a contar para os meus leitores um pouco da história da minha avó paterna, que é a história das raízes da nossa família Rocha Leão, que me educou.

Natural de Mococa, noroeste do interior paulista, minha avó paterna Ana Luiza era órfã de mãe e pai. Foi seu tio materno, solteiro, o Dr. Arcrísio, que a criou como filha dentro dos padrões da aristocracia portuguesa. Eles moravam no casarão de uma grande fazenda. O Dr. Arcrísio era um médico que havia estudado na Europa, mas não exercia a profissão. Ele era um “barão do café”; sua riqueza provinha das muitas fazendas de café que herdara da família. Homem justo e de bom coração, ele deu carta de alforria a todos os seus escravos, antes mesmo da Lei Aurea, transformando alguns deles em empregados assalariados e ajudando os demais a se postarem na vida.      

Minha avó teve um preceptor português na infância e na adolescência. Ele ensinou-lhe português, francês, conhecimentos gerais, valores humanos, virtudes, piano (ela possuía um piano francês de quarto de cauda), canto lírico, declamação, etiqueta social, bordado gobelin (pronuncia-se “gobelêm”, delicado bordado francês, em seda, com bastidor para esticar o pano), elegância no vestuário, prendas francesas de uma sinhazinha e futura dona de casa (sinhá), etc.

Com seu preceptor, minha avó também estudou a Bíblia, adquiriu o hábito de ler diariamente o Novo Testamento: o Evangelho e as epístolas de Paulo. Ele também incentivou minha avó a ler muitos romances em português e em francês, livros que vinham de Lisboa e de Paris, de vapor (navio). 

Tudo o que a minha avó e o seu tio necessitavam para viver com conforto e luxo vinha de Paris: o champanhe, os romances franceses, as partituras e livros de piano (para ela)  e violino (para ele), os gobelins (tecido riscado para bordado), os tecidos para os vestidos (e para os ternos do tio), os figurinos (revistas com os modelos da última moda), os agasalhos, os chapéus, os calçados de couro e complementos para o vestuário como luvas, meias, joias, perfumes, cremes, maquiagem, artigos de higiene, etc. De Lisboa vinham os livros portugueses, bem como o vinho tinto e o vinho do porto, azeitona, ameixa, castanhas, nozes, etc. Brasileiros eram as modistas e os alfaiates. 

Os saraus eram uma forma de lazer no próprio casarão. Eram seletas recepções noturnas para poucos amigos, realizadas de tempos em tempos. O traje era a rigor. A reunião começava às 18 horas e ia até as 22. Minha avó ao piano, o tio ao violino. Ela no canto lírico, os dois na declamação de poesias. Os convidados também participavam ao piano, violino e na declamação. Às vezes alguém trazia um violoncelo ou mais um violino para tocarem em duo, em trio. Poesia e música de câmara, mas também música alegre como as valsas de Strauss Jr. Tudo ao vivo. O sarau oferecia canapés e docinhos finos, champanhe francês. 

O casamento

Aos 19 anos, num sarau do casarão, minha avó conheceu Alberto da Rocha Leão, jovem conde português de 28 anos, nascido em Lisboa (a capital portuguesa), que estudara direito na Universidade de Coimbra. Como aluno dessa universidade, Alberto tinha sido um “capa preta”, nome da vestimenta de lã preta com abertura para enfiar as mãos, usada sobre o terno preto, e obrigatória no clima europeu.    

Ana Luiza conheceu Alberto porque ele estava no Brasil, em férias com uns amigos, e fora convidado para um sarau no casarão do Dr. Arcrísio. Ana Luiza era dona de uma beleza rara. Descendente de tradicional família portuguesa aparentada com austríacos, ela era alta, esguia, pele muito alva, grandes olhos verdes, cabelos lisos, castanhos escuros, longos e presos, rosto de traços delicados. Muito elegante, tinha uma bela voz (cantava modinhas de Carlos Gomes), tocava bem piano, declamava com desenvoltura; sua prosa culta revelava suas muitas leituras da moda; falava fluentemente o francês. 

Alberto era um belo homem, alto, porte forte e elegante, pele alva com bochechas rosadas, cabelos castanhos, lisos, curtos, olhos castanhos, barbeado, usava um bigode fino revirado nas pontas. Ele declamava muito bem as poesias portuguesas da moda, tinha muita leitura e assunto para uma boa prosa, falava fluentemente o francês, escrevia em jornais. 

O convívio de Ana Luiza com o jovem Conde Alberto, em outros saraus, prosseguiram no casarão. Encantados um com o outro, Alberto logo pediu a mão de Ana Luiza em casamento, ao Dr. Arcrísio. Então, noivaram à moda antiga, um em cada ponta do grande sofá da sala de visitas com a ama dela por perto. O contato físico entre os dois resumia-se ao beija-mão, uma reverência na chegada e na saída dele do casarão em horário bem cedo na noite. Em dois meses de conhecimento, marcaram o casamento na igreja católica, como era o costume, e onde se fazia o registro civil, pois não havia cartório. Ana Luiza tinha um rico enxoval pessoal e para a casa, tudo vindo de Paris.    

Chegou o dia do casamento. Então, aconteceu um incidente. Ana Luiza tinha uma pequena cachorra da raça fox, branca e preta, chamada Jolie (“bonita”, em francês). Jolie adorava a dona, estavam sempre juntas. Enquanto Ana Luiza se preparava com o vestido de noiva, a cachorra ficou trancada, pois chovia muito, o quintal era pura lama. De repente, a cachorra conseguiu escapar, saiu correndo e pulou com as patas cheias de lama em cima da dona, já vestida de noiva. Foi uma correria da criadagem para limpar e passar o longo vestido branco. A cerimônia da igreja acabou se atrasando.           
Logo depois do casamento, Alberto recebeu carta urgente do pai, intimando-o a levar a esposa para Lisboa onde deveriam morar no condado da família. Mas, minha avó recusou-se a ir. Deu como desculpa o medo de cruzar o Atlântico de “vapor”. Meu avô respeitou a decisão dela. Na verdade, ela não queria morar num castelo enorme onde deveria submeter-se às regras da família dele, obedecendo à sogra, como era o costume. Minha avó era decidida, tinha opinião própria, preferiu sua independência, rompeu inclusive com a tradição que também existia no Brasil: casar e morar com a grande família no casarão.

O casal permaneceu no casarão de Mococa, SP, com o tio, apenas o tempo de montar uma boa casa em separado. Minha avó não foi para Portugal, não fez questão nenhuma de virar condessa nem de transmitir o título aos filhos, não precisava disso. E também não precisava de riqueza, nem de status, pois pertencia à rica aristocracia brasileira.  

Mas, porque meu avô não levou a esposa imediatamente para conhecer a família portuguesa, desobedecendo às ordens do pai, meu avô perdeu o título de nobreza e foi deserdado pela família. A única coisa que ele pediu à família foi os dois grandes volumes do dicionário de português com capa de couro marrom, que vieram de navio. Meu avô ficou sem dinheiro. Mas, o Dr. Arcrísio, pai de criação de minha avó, deu-lhe um generoso dote pelo casamento. 

Assim, meu avô em pouco tempo tornou-se um comerciante bem sucedido com uma grande casa de “secos e molhados finos”, que estabeleceu em Moji Mirim, SP, onde o casal fixou residência. Meu avô tinha uma boa prosa com sua fina clientela, o que fazia parte do seu talento especial para o comércio. Além dessa casa comercial, logo meu avô tinha outro estabelecimento próspero ligado ao beneficiamento de café na cidade de Santos, SP. E foi expandindo seus negócios, ficou muito bem de vida. 

Quando minha avó casou, levou consigo sua mucama Inocência que era bem mais nova que ela, alforriada e ganhava um ordenado. Era mais uma dama de companhia, sabia ler, fazia parte da família.  

Certa vez, meu avô recepcionou o jurisconsulto da república (o procurador da república da época) Ruy Barbosa, homem culto, quando este passou por Mogi Mirim, tendo sustentado com ele uma longa prosa, na estação de trem, enquanto o mesmo esperava o horário para São Paulo e comia jabuticabas frescas que meu avô havia levado para ele.  Meu avô escrevia sempre para o jornal de Mogi Mirim, “A Comarca”. Ele era um excelente redator. 

Em casa, o casal fazia refeições numa mesa retangular enorme, um em cada ponta, ocasiões em que só falavam francês. Os filhos pequenos e adolescentes comiam em outra sala, em outro horário, sob o olhar atento da ama. Treze filhos. Minha avó e meu avô eram um casal unido; eles foram muito felizes. 

Quando ele faleceu, aos 52 anos, ela estava com 42. Eu não conheci meu avô Alberto, só de foto, nos seus 28 anos, quando casou com minha avó. Quando meu avô faleceu, em 1912, meu pai Olavo, o penúltimo filho, estava com dois anos. 

*

Nasci em Mogi Mirim, SP, em 1940, no meio da Segunda Grande Guerra Mundial com racionamento de alimentos e outras dificuldades. Nós morávamos no centro da cidade. A partir de 1944, nos meus 4 anos, passei a morar com minha avó paterna, Ana Luiza, em São Paulo. Convivi com ela até os meus 12 anos de idade, quando ela faleceu, em 1952. Com ela aprendi muitos valores humanos importantes e tive a base da minha educação europeia.

Sou grata à minha avó Ana Luiza e ao meu avô Alberto, raízes da nossa família Rocha Leão, bisavós maternos dos meus quatro filhos: Marcus Vinicius (filho do meu primeiro casamento com o Dr. José Dalton); Izabel Cristina, Raquel Helena e Ismael Augusto (filhos do meu segundo casamento com o Engenheiro Wilson). Aos meus dois ex-maridos, já falecidos, a minha gratidão pela bondade com que sempre me trataram e aos nossos filhos. Este ramo da família Rocha Leão termina na minha geração. Dele restou-nos o DNA e a gratidão.


Minha saudosa mãe Antonia é o lado Tomás (português) da nossa família, embora esse sobrenome não faça parte do meu nome. Ela era cabocla, filha de minha avó Maria, índia, com meu avô português. Minha mãe tinha a pele ligeiramente morena, do lado índio, e os olhos castanhos miúdos ligeiramente puxados. Era muito bonita. Meu pai Olavo dizia que ela deveria ter sido chinesa em reencarnação próxima, pois fazia vestidos para ela mesma seguindo modelos chineses, que ela nunca havia visto na vida. Só usava cor única para os vestidos, sempre o mesmo modelo reto semi-longo com aquela golinha pequena rente ao pescoço (tipo gola de padre), comprimento da saia pelo meio da perna com uma abertura de um lado. Só usava sapatos baixos, fechados. Mas, como não havia modelos femininos desse jeito, então usava sapatos  masculinos de cromo alemão, com cordões, tinha personalidade, e andava empinada nos seus 1,50 m de altura. Usava os longos cabelos pretos presos num birote. Parecia uma chinesa. 

Era muito enérgica e disciplinada, mas tinha modos delicados e elegantes, uma voz aguda para o canto e a fala, sabia etiqueta social, cuidados com o corpo (fazia ginástica todos os dias), com a pele e os cabelos, etc, tudo o que aprendeu quando foi dama de companhia de uma família rica de origem portuguesa, quando solteira, e com quem aprendeu também conhecimentos gerais, português (redação), leitura de romances; escrevia poesia e pequenas peças de teatro. Só havia feito o segundo ano primário. Quando jovem, escrevia poesia para o jornal de Mogi Mirim, “A Comarca”. Devo muito à minha querida mãe, a começar da minha própria vida e por valores muito importantes que com ela aprendi. Fisicamente, tenho o corpo e a cor da pele da minha mãe, mas meus traços de rosto são de origem portuguesa. À minha querida mãe serei eternamente grata. Faleceu aos 74 anos, em 1992. Que Deus a abençoe. 

Não conheci meu avô materno, Pedro Tomás, imigrante português, que morreu cedo. Minha avó materna, Maria, era uma índia de olhar sofrido, que morava na roça nos arredores de Moji Mirim, doce mulher que vi duas vezes na minha infância. Ela casou-se em segundas núpcias com um espanhol de boa situação financeira. Hoje, meus primos de primeiro e segundo graus estão todos bem de vida, cursaram universidades, moram em São Paulo. Das minhas tias “índias” (pois que fisicamente eram verdadeiras índias), só restou a Izete, de Mogi Mirim, da minha idade, mãe do meu primo Antonio Carlos, advogado cinquentão bem sucedido, em São Paulo, meu afilhado de batismo, avô. 

Sempre me dei bem com a família da minha mãe nos poucos contatos que tive com ela. Espíritos inteligentes, bondosos, alegres, batalhadores, pacíficos.

Mas, não convivi nem convivo com ninguém. Sou muito grata aos meus avós maternos, o outro lado das minhas raízes. Minha única e querida irmã, Anabela, que mora em São Paulo, é quem me dá notícias do lado materno da nossa família. Minha irmã parece uma portuguesa de bochechas rosadas e cabelos pretos. Nós não temos nenhum traço semelhante, fisicamente nem parecemos irmãs. Ela é maestrina, pianista, organista, compositora, musicista profissional e administradora de empresa hospitalar (do HC da USP), em São Paulo, aposentada. Tem seis corais pequenos dos quais é regente: um da sua igreja metodista, dois de instituições públicas e os outros três para apresentações filantrópicas em hospitais, asilos e outros eventos a que comparece voluntariamente. Seu mais recente grupo coral é formado por cegos. É solteira, sem filhos, mas tem um milhão de amigos. Minha querida irmã, amiga, guerreira, grande coração. Que Deus a abençoe.    

Devo muito também ao meu pai Olavo que me encaminhou na cultura geral, gosto pela língua portuguesa, patriotismo, artes (pintura e desenho), música clássica, piano e Espiritismo, entre outros valores espirituais. Meu pai só fez o ginásio, aprimorou-se com um irmão mais velho e tornou-se um auto-didata; lia muito das bibliotecas públicas, lia também em inglês. Naquele tempo não havia ensino médio. Fazia palestras sobre o Espiritismo nos centros espíritas paulistanos. Trabalhou a vida inteira nos Correios e Telégrafos como modesto oficial administrativo. Nós tínhamos um bom padrão de vida porque morávamos com minha avó Ana Luiza no bairro de Pinheiros, de ricos.

Filho de português, meu pai era um autêntico português de nariz fino e bochechas rosadas, barbeado. Passou a vida lendo o jornal O Estado de São Paulo e tinha o prazer de comprá-lo diariamente na banca. Antigamente não havia assinatura e, mais tarde, ele não quis fazer assinatura, afinal a graça era ele comparecer à banca, todas as manhãs, para dar dois dedos de prosa com o jornaleiro, saber as novidades do bairro. Meu pai era muito simpático e comunicativo.  Ele só andava de terno e gravata. Usou chapéu até 1950 quando caiu de moda. Devo muito da minha formação cultural ao meu querido pai, a quem serei eternamente grata. Faleceu em 2004. Que Deus o abençoe.   

Para os meus quatro filhos passei as bases da minha educação europeia, que recebi da família do meu pai Olavo, a começar de minha avó Ana Luiza. Por isso, as raízes culturais da nossa família são de origem greco-romana, hoje valores brasileiros de que muito me orgulho. 

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Profª Maria Lucia

Imagem: Árvore Vermelha - http://img.elo7.com.br/product/zoom/C3086C/ponto-cruz-em-pdf-arvore-vermelha-grafico-de-ponto-cruz.jpg

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