sábado, 9 de fevereiro de 2013

Conto - A Bichinha

A BICHINHA

Por Lúcia Rocha

Todos os dias era a mesma coisa. Seu Pereira não sabia mais o que fazer. Aquela cabra da peste não lhe dava leite suficiente. Ele ficava que ficava ali na teta da cabra e nada. Também, a coitadinha já andava cansada. Era verdade que criara muita ama-de-leite, muita criança no desmame. E aí, pronto! Estava aposentada. Era isso.

Seu Pereira temia ouvir a verdade, lá dentro, bem dentro do seu coração, pois o miolo, mole que não tinha, antes duro como que, só pensava: cabrita não se aposenta, é do campo, é da vida, é do homem, da casa.

O leite ele vendia? Não, claro que não. Era o que dava ao filho, o “menino”, como o chamava. Cabra da moléstia, essa agora de se aposentar, onde ele ia achar outra?

Bem que ouvira dizer de Virgolino, o tal do violão rachado (rachado porque era ruim pra dedéu, o tocador, claro). O velho Virgolino dizia que não queria mais criar cabritas, que dava muito trabalho, queria dar o rebanho todo. Era isso.

¾ César! Vem cá, menino! Me leve na casa de Virgolino...

¾ Sim, pai... Onde ele mora?

¾ Sei lá onde ele mora... Ouvi dizer... Ah, não sei! Me leve lá.

César, pouco mais que um menino, obedecia. Lá se foram os dois.

Chegando no velho casarão de Virgolino, seu Pereira entrou na varanda, falou da sua cabra aposentada, a única que tinha. E precisava do leite. Então, pediu a Virgolino. Quem sabe, ele podia lhe dar uma cabrita. No meio de tantas, uma não havia de fazer falta. Afinal, era seu vizinho... um pouco distante, mas era. O sovina Virgolino foi lá fora, olhou seu rebanho de bom tamanho, depois olhou seu Pereira, maltrapilho. Coçou o queixo e a barbicha rala, ali plantada, e disse:

¾ Pode levar... Uma só!

Porque afinal, a comadre Serafina também queria. E depois, a prima Deusa lhe havia pedido ... Que levasse aquela, a cabrita preferida, como as outras, aliás. Fosse embora!

A cabrita foi amarrada no fio fino, de má vontade, resmungando no caminho, que não era muito longe do curral do novo dono.

Um menino no caminho riu de seu Pereira, reconhecendo a cabrita de Virgolino que estava indo embora. Devia ser de fome, que ele já não tinha direito o que dar de comer às cabritas , já faltava forragem. Tudo bem, lá ia a bichinha no resmungo, preta e branca, magricela, simpática que só.

Aí, então, uma mulher também reconheceu a danadinha que berrava, não queria entrar de vez no cocho de seu Pereira. Magricela, um pouco bichada, algum berne que se podia extirpar depois de maduro, o cancro mole na cabeça, ossudinha de fraqueza, a bichinha dava era dó.

Um vizinha logo chamou a outra pra ver a bichinha empacada na entrada da cocheira. Num instante, a porta da casa estava apinhada de gente, tudo por uma cabrita, que de silenciosa não tinha nada.

E ainda houve quem levantasse o falso de roubo. Roubada! Por isso, certamente, e de vergonha, não querendo se incriminar, ser coadjuvante ou artista principal na cena do crime, o roubo, a cabritinha empacava, não compactuava.

Num instante, a mulher do dono do bar da esquina sugeriu e logo trouxe uma varinha de marmelo pra amanhar a bichinha. Varetas e mais varetas, que nada. Ela só fazia sofrer e gritar mais. Já berrava de partir o coração.

Nisso, passava por ali um pastor de ovelhas, que ficou abismado:

¾ Ó, gente, então isso se faz? A pobre da bichinha quer é colo! Alegria nela e não ódio. Amanhar assim é pecado! Vem cá, minha bichinha, coitadinha...

E foi logo dando uns tapinhas amorosos na cabecinha miúda, ossuda de tristeza do animal. Depois, lembrou-se de lhe dar um pouco de erva dali, beira de estrada.

Não é que funcionou?! A bichinha aquietou-se. Querendo privacidade, seu Pereira, com um pedaço de pau, espevitou-se em cima do povo, dando uma de calçudo valente e correu com todo mundo ladeira abaixo. Os curiosos se espalharam, foram embora.

Mas, veio um dia e veio outro e a bichinha não se acostumava com o lugar. Todos implicavam com ela porque era ossuda, cheia de berne e coisa e tal. Mal cuidada, escorraçada. A coitadinha procurava o pastor cada vez que ele passava pra receber agrado. A casa de seu Pereira era aberta, como as demais, a vizinhança era de confiança.

Um dia, César levantou cedo. Mas, não achou a bichinha no cocho. Nem lá dentro, nem lá fora. Nem num lado nem no outro do pedaço.

O menino correu sete léguas. Varreu o distrito, de porta em porta. Disseram a César que tinham visto um pastor com um rebanho engraçado: cinco ovelhas e uma cabrita malhada. César imaginou que devia ser a Bichinha, nome que lhe havia dado.

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